Com a passagem por Cabo Verde, o “Afonso de Albuquerque” tinha terminado a sua longa visita a todas as províncias ultramarinas iniciada em Dezembro de 1951. Já de regresso a casa, foi ordenado ao navio para estar presente em Dakar a fim de representar Portugal na cerimónia da entronização da imagem da Nossa Senhora de Fátima.
Depois de ter salvado a terra com 21 tiros, o navio foi atracar ao cais do Arsenal da Marinha Francesa. Após a apresentação de cumprimentos às entidades oficiais e uma vez recebida a habitual retribuição, nesse mesmo dia, à noite, realizou-se na Catedral de Dakar uma procissão das velas, estando presentes o Comandante, Oficiais e guarnição do “Afonso de Albuquerque”, com a qual se deu início às cerimónias entronização da imagem de Nossa Senhora de Fátima. O andor era ladeado por duas alas de marinheiros portugueses, que se prolongavam ao longo de toda a procissão.
Na manhã do dia 13 realizou-se na mesma Catedral, a missa solene pontifical celebrada pelo Bispo de Bissau, D. José de Magalhães que agradeceu ao Cônsul de Portugal ter tornado possível tão elevada manifestação de Fé, e ao Comandante Galeão Roma a presença da Marinha de Guerra portuguesa nestas celebrações.
Fazia parte do programa das cerimónias, um grandioso baile de gala no Lido, com a actuação da nossa grande Amália Rodrigues, sempre agradável de ouvir, vinda expressamente de Lisboa.
A alegria e a animação irradiavam dos rostos de todos os presentes. No entanto, havia algo que era assunto de todas as conversas a que horas chegava a Amália? Ela viria mesmo?
Reinava no ambiente um misto de impaciência e de dúvida. Mas por volta das 2 horas, eis que a Amália, acompanhada pelos seus guitarristas privativos, entra deslumbrante no enorme salão. De pé batendo palmas, todos saudavam Amália. De uma simplicidade e simpatia notáveis, Amália conquistou a assistência e começou então a cantar desde logo de forma inconfundível como só ela sabia, debaixo de enormes ovações não só dos portugueses, mas de todo o público presente.
Após ter terminado a sua actuação, Amália reuniu-se à oficialidade compatriota, a todos atendia, com todos falava e o tempo ia passando em tão agradável companhia, pois Amália tinha o condão de transportar consigo um pouco da Pátria querida, que os portugueses tanto sentem quanto mais dela estão afastados.
Mas para sabermos o que efectivamente se passou a partir daqui, conversámos com os Comandantes, na altura Segundo-Tenente Jorge Wagner (JW) e Guardas-Marinhas Perneco Bicho (PB) e Vasconcelos Castelo (VC), que nos contaram como é que a Amália foi a bordo do “Afonso de Albuquerque” cantar em privado para a guarnição do navio.
RA: Depois da actuação no Lido, como é que a Amália Rodrigues foi convidada para ir a bordo do “Afonso de Albuquerque”?
A RA enrevista os oficiais que ouviram Amália cantar em Dakar.
JW: Bem, ela não foi propriamente convidada. A questão é esta, tenho muita pena de Amália ter morrido, mas nunca cheguei a dizer publicamente o que efectivamente me tinha sensibilizado na Amália.
Não era só a fadista, mas a verdadeira Senhora que ela era. Hoje, quando se fala do povo e falar com o povo, ela sabia-o fazer como ninguém e de facto a Amália teve um gesto extraordinário para com a Marinha, mostrando que compreendia aqueles que não tinham podido assistir ao espectáculo dela no Lido oferecendo-se assim para ir cantar a bordo do navio.
De facto, e realçando este aspecto, a Amália depois de ter chegado ao Lido às 2 horas da manhã e ter cantado até às 5 horas com imenso sucesso, ofereceu-se espontaneamente para ir cantar ao navio e perguntou ao Comandante Galeão Roma “O Sr. Comandante gostaria que eu fosse cantar para a sua guarnição?” isto por outras palavras, queria dizer que ela gostava da Marinha, mas gostava sobretudo das pessoas, fossem elas quais fossem, estando disposta a sacrificar-se para lhes dar prazer e o direito de a ouvirem cantar. Foi uma nobreza notável por parte da Amália.
Perante isto, o Comandante que era uma pessoa de uma educação extraordinária, respondeu-lhe “Eu não me atreveria a fazer-lhe um pedido desses, mas já que faz esse oferecimento, aceito-o com todo o coração”, agradeceu e seguiram para bordo.
A Amália chegou ao navio perto das 5 horas da manhã, acompanhada pelos seus guitarristas.
Quando o pessoal do navio começou a passar palavra de que a Amália Rodrigues estava a bordo e ia cantar para eles, era ver como os seus rostos se modificaram e iluminaram de alegria. A alvorada foi antecipada de 2 horas. Todos corriam para a Câmara de Oficiais.
E quando a Amália apareceu diante de tantos olhos, alguns deles esbugalhados perante aquela aparição que consideravam um sonho, todos se acomodavam o melhor que podiam para não perder o mais pequeno pormenor do que iria suceder. Amália cantou então, e a todos os presentes sensibilizava e comovia.
PB: Amália cantou incansavelmente, num convívio extraordinário, onde estava também presente pessoal do N.E. brasileiro “Almirante Saldanha”, que se encontrava em viagem de instrução de Guarda-Marinhas e estava atracado junto ao nosso navio.
Ninguém sentia a mínima vontade que aquilo terminasse.
Não havia espaço para bater palmas, mas as lágrimas que aqueles corações vertiam eram o melhor aplauso à actuação de Amália, mudo e silencioso, embora muito mais significativo.
Era quase dia quando Amália terminou de cantar. O toque à faina nesse momento a todos veio trazer à realidade. O navio ia sair para Lisboa.
JW: Por ser muito cedo, caía humidade, pelo que, o Comandante foi buscar a sua gabardine para gentilmente cedê-la a Amália e com a pressa, o Comandante nem se lembrou de tirar os galões. A Amália sai e fica no cais a despedir-se de nós numa imagem inesquecível.
VC: Lembro-me perfeitamente do branco do seu vestido até aos pés e a gabardine do Comandante com os galões dourados, o que fazia um contraste extraordinário.
Os Oficiais e Guardas-Marinhas ocuparam os seus postos com os seus uniformes de gala, o pessoal tal qual como se havia reunido na câmara.
Largaram-se as espias, o navio começou a afastar-se e Amália, em terra, a todos sorria e acenava.
O navio começou a afastar-se cada vez mais e lá ao longe ainda se avistava o aceno de Amália, a quem de bordo retribuiam muitos panamás e bonés brancos de uma guarnição eternamente grata.
Obrigado Amália!
Alexandra de Brito
Referência: “Memórias de um Guarda-Marinha”, Cte. Ferreira Setas, Anais do Clube Militar Naval (nº 10 a 12/1963).
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1 comentário:
Adorei ler! Muito obrigada por mais uma história... ;) *
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