novembro 15, 2010

Amália e Silva Nogueira


Entre as décadas de 1920 e 1950, Silva Nogueira e Manuel Alves San Payo lideraram o retrato fotográfico como meio de construção da imagem pública e divulgação pessoal de todos os que dela dependiam para o seu reconhecimento profissional. Enquanto San Payo foi preferido pela alta sociedade, pelos políticos e pelos intelectuais, Silva Nogueira reinou no mundo do espectáculo. Proprietário da Fotografia Brasil, com esse nome comercial participa, como profissional, na “Exposição Nacional de Photographia”, em Novembro de 1916, com treze imagens. Todos os seus trabalhos são classificados em “primeira classe”. Em Março de 1929, figura como Silva Nogueira na lista dos expositores da “Exposição-Concurso de Fotografias”, promovida pela revista mensal “Arte Fotográfica”, com um bromoleo em papel Wellington e dois brometos, ganhando a primeira classificação na secção de “Scenas da vida de trabalho.

Em 1942, data da primeira sessão (que chegou aos nossos dias) de retratos fotográficos com Amália, Silva Nogueira é já um fotógrafo de grande prestígio e experiência, no auge da sua vida profissional. Chegaram até nós alguns cadernos em que registava o nome dos seus clientes na letra correspondente, acrescido do número de registo das caixas de negativos. A leitura destes livros de registo permite quase um inventario das personalidades da música, teatro, cinema e espectáculos da sociedade portuguesa da época. Ali figuram todos os grandes nomes, incluindo o de Ercília Costa, a grande cantadeira do fado até ao despontar de Amália. Curiosamente, nem Amália Rebordão nem Amália Rodrigues se encontram neste rol.

As primeiras imagens caracterizam-se pela inexperiência do modelo, olhar perdido num céu imaginário, vestuário vulgar de blusa branca, saia normal e xaile tradicional, tão comum nas lisboetas e nas cantadeiras de fado, a quem servia de apoio para ocupar as mãos. A iluminação é a que se usava para retratos femininos, com a luz principal (frontal) muito suavizada, recorte dos cabelos e fundos claros. No grande plano, procura-se transmitir uma certa alegria e sugere-se, através da boca entreaberta, a cantora. Como são distantes da que se viria a tornar em breve a imagem característica, verdadeiro ícone do fado, de Amália Rodrigues. É na imagem de corpo inteiro que podemos identificar o que era então a representação comum de uma cantadeira de fado.

Na segunda sessão, em 1944, já encontramos Amália de vestido e xaile preto. Em 1946 (terceira sessão), apesar do lenço branco na cabeça ou no pescoço, talvez necessário à personagem da opereta “Mouraria”, encontramos de novo o mesmo traje negro. A personalidade e a melancolia acentuam-se nas imagens de 1949, de que destacamos uma pose já muito elaborada, a 45 graus de costas, com a cara voltada em diagonal e o olhar baixo, a sombra deliberadamente projectada na cortina de fundo. Mas é na sexta sessão, em 1950, que os seus retratos atingem a plenitude e maturidade de uma imagem de marca, que se vai tornar uma referência obrigatória para todas as fadistas, ícone do fado e de Portugal através do mundo.

Amália Rodrigues, de xaile e vestido comprido pretos, com os seus “fatos de cantar”, tornou-se tão familiar, durante mais de meio século, que nos fez acreditar que as fadistas se vestiram sempre assim, por uma tradição mais antiga cuja origem nem questionamos. Mas terá sido realmente Amália a criar esta imagem? Os puristas, como Linhares Barbosa, já reclamavam a partir dos anos 30 a substituição do “manton” andaluz de cores variadas, então em voga, e que, pelo seu alto preço, constituía uma demonstração de sucesso, pelo xaile negro, bem mais português, como se lê no jornal “Guitarra de Portugal”. Esta publicação também refere o apoio que a ideia suscitou em diversas fadistas. Aliás, em 1942, Amália já figura de xaile negro. O que nos parece indiscutível é que o seu “fato de cantar” constituiu uma novidade nos anos 40 e a opção pelo negro foi por ela própria justificada, por ser uma cor que fica sempre bem, tal como o branco, mas o branco, na sua opinião, não convinha ao Fado.

Neste período de doze anos, coberto pelos retratos fotográficos de Silva Nogueira, assistimos à evolução do modelo tímido para a vedeta mundial, cheia de personalidade e de segurança em si própria, capaz de cortar o cabelo e chocar os seus admiradores, capaz de olhar de frente a câmara e de nos desafiar, enfrentando-nos com as mãos nas ancas, pronta a inovar em diversos sentidos, mas que até ao fim, para cantar, nunca dispensou o seu traje negro, imagem de marca da sua presença. Também Silva Nogueira, seu fotógrafo preferido durante estes anos, foi aprendendo e revelando as possibilidades da fotogenia deslumbrante de Amália, e o seu contributo foi essencial para a construção e fixação pública da imagem da artista.

Fonte: MatrizPix

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